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Estamos numa fase em que ficar em casa é importante para o bem-estar de todos e para sairmos o quanto antes desse cenário. Neste contexto, muitas pessoas estão sentindo falta de andar ao ar livre, passear nos parques ou simplesmente desfrutar a liberdade de estarem do lado de fora de suas residências. Observar as aves do entorno da sua residência pode ser uma forma de se conectar com o exterior e, ao mesmo tempo, ajudar na coleta de dados para a ciência.
O ser humano possui uma necessidade inata de desenvolver ligação emocional à vida e aos processos vivos. A falta dessas atividades pode ser prejudicial à saúde e, em alguns indivíduos, ocasionar inclusive transtornos de ansiedade. A observação de aves é considerada uma das formas mais efetivas de retomarmos essa conexão com a natureza. Não à toa, essa prática tem crescido notavelmente em diversos países na forma de hobby, incluindo no Brasil. No mundo todo, pessoas colecionam o registro de espécies reproduzindo o velho hábito de colecionar um álbum de figurinhas.
Ciência Cidadã
Esses observadores de pássaros, além de fazerem suas listas de espécies e tirarem fotos incríveis para suas coleções particulares, também acabam contribuindo com a ciência. Essa contribuição na maioria das vezes não é direta ou intencional por parte do observador, mas gera dados que podem ser fundamentais para os pesquisadores, colaborando para responder questões biológicas e ecológicas das aves. Chamamos isso de Ciência Cidadã, ou ciência colaborativa.
Neste caso específico, pessoas comuns (não acadêmicas ou não ornitólogos) registram as espécies que vêem no entorno de sua casa e suas observações ficam disponíveis para que o pesquisador possa acessar e aplicá-los em seus estudos. Os "cidadãos cientistas", por estarem amplamente distribuídos geograficamente, podem fornecer dados valiosos em longo prazo e em larga escala. A Ciência Cidadã tem sido notavelmente bem-sucedida no avanço do conhecimento científico sobre distribuição e ocorrência de espécies de aves, migração de aves, impacto nas atividades humanas, efeitos das mudanças climáticas, monitoramento de espécies ameaçadas de extinção e ações de conservação da biodiversidade.
Esse "braço-amigo" da Ciência representa um importante recurso para pesquisas onde o número de pesquisadores e ornitólogos é escasso para cobrir grandes áreas, implicando em altos custos de pesquisa, para citar apenas uma aplicação. Além disso, por envolver o cidadão "comum" na pesquisa, a Ciência Cidadã pode ser uma valiosa ferramenta de educação ambiental.
Vários projetos de monitoramento participativo de aves em larga escala já acontecem há anos em países do Hemisfério Norte, como o Breeding Bird Survey, o Christmas Bird Count e o Project FeederWatch. Nesse último, os observadores monitoram as aves sem sair de casa, nos comedouros e bebedouros em suas residências, as quais são em sua maioria em áreas urbanas. Isso mostra o potencial que a observação do cidadão comum tem para entender o efeito da urbanização sobre as aves, por exemplo.
Registros de espécies comuns em áreas urbanas feitos pela pesquisadora Karlla Barbosa, da Unesp em Rio Claro (Crédito: Karlla Barbora)
Apps e Ciência Cidadã
Mas como acessar esses dados? No Brasil existem plataformas online gratuitas onde as pessoas podem registrar as espécies que observam. Com relação às plataformas exclusivas para aves, temos duas mais utilizadas, o eBird e o Wikiaves, ambos gratuitos.
No e-Bird, criado pela Universidade de Cornell (EUA), é possível inserir uma lista de espécies através do site ou usando um aplicativo de celular. Nessa segunda opção, o aplicativo já registra a coordenada geográfica, a hora e o tempo de observação. Após a lista ser inserida na plataforma, é possível ilustrá-la com gravações do canto das aves ou fotos. O pesquisador que se interessar em acessar esses dados pode solicitá-los no site.
Já o Wikiaves é uma plataforma 100% brasileira onde as pessoas podem inserir as fotos e os sons das aves, além de dados de localidade, data, hora e outros detalhes sobre os registros. A observação de aves tem um componente interessante e inerente à pratica, que é a de identificar as espécies observadas. Hoje em dia essa identificação não é mais um grande desafio, pois um aplicativo gratuito de celular, o Merlin, é um guia de aves completo que pode ser baixado gratuitamente pela Internet e auxilia na identificação das aves de uma determinada região ou do Brasil inteiro.
Neste aplicativo, é possível encontrar 1.638 espécies de aves, com fotos, cantos, mapa de distribuição e um pequeno texto sobre cada espécie. Além disso, o aplicativo ajuda na identificação através de características da ave ou através de foto.
Dados aplicados à pesquisa
Mas para que servem esses dados? Por exemplo: se nesse período de isolamento as pessoas postarem informações sobre as aves observadas nas áreas urbanas, teremos um retrato temporal sobre diversos aspectos das espécies nesse momento, como distribuição, uso de habitat, hora do dia, número de indivíduos ou outros comportamentos que os observadores inserirem na lista. As aves, por estarem distribuídas por toda parte e serem relativamente fáceis de amostrar, representam ótimos termômetros sobre as condições ambientais. Por exemplo, se uma espécie mais sensível desaparece, provavelmente o ambiente sofreu alguma alteração que a prejudicou.
No meu estudo de doutorado, eu apresento a evolução da Ciência Cidadã no Brasil nas últimas décadas e testo como os dados de ciência cidadã dessas plataformas podem ajudar a obtermos informações inéditas sobre as aves migratórias que usam áreas urbanas. Dados de história natural de espécies como bem-te-vi-rajado (Myiodynastes maculatus), peitica (Empidonomus varius), tesourinha (Tyrannus savana) ou príncipe (Pyrocephalus rubinus) são ainda desconhecidos e, por isso, eu utilizo dados de ciência cidadã para entender, por exemplo, a área mínima que um parque, ou área verde, precisa ter para que essas espécies ocorram. Ou ainda qual a agenda migratória (data de chegada e partida) dessas aves numa cidade grande como São Paulo.
Em longo prazo e com grande volume de dados, é possível ainda reunir informações e verificar, por exemplo, se fatores climáticos alteram a agenda migratória das aves. E isso tudo pode começar com simples gestos: cada um observando as aves do seu jardim através da janela. Portanto, fica a dica: aproveite esse tempo que está em casa e pare por 10 ou 15 minutos para observar as aves no entorno da sua residência, compartilhe nas plataformas de ciência cidadã e ajude a conhecermos melhor nossas espécies.
*Karlla Barbosa é doutoranda e pesquisadora do Laboratório de Ecologia Espacial e Conservação (LEEC) do Instituto de Biociências da Unesp no câmpus de Rio Claro, onde estuda o efeito na urbanização nas aves migratórias
Imagem: Divulgação Unesp