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Muito se tem escrito, nos últimos dias, sobre a pandemia causada pela disseminação da COVID-19, mais conhecido por Doença do Coronavírus. A proporção de informações e as hipóteses são de todo tipo, algumas delas nem sempre bem fundamentadas. Numa primeira aproximação, entendemos que esse é um problema de Saúde Pública.
Aos poucos vamos notando que são muitas variáveis e fatores incidindo sobre o processo. Somos levados a concluir que é preciso transversalidade no olhar e articulação entre múltiplos saberes e áreas de conhecimento para refletirmos mais sobre a lógica de difusão do vírus e suas consequências. Percebemos, então, a importância da História, da Economia, da Política, da Sociologia, tanto quanto da Medicina, da Biologia, da Física ou da Química, para citar alguns campos do saber. Do ponto de vista da Geografia, muitos recortes poderiam ser estabelecidos e logo concluímos que não se trata de um problema de saúde pública, nos mesmos moldes que outras pandemias geraram, mas de um novo desafio a ser enfrentado: a busca de Saúde Global.
Alteraram-se as escalas da economia e da vida, ampliaram-se os entrecruzamentos, que um mundo complexo enseja e exige, por isso precisamos ampliar nosso enfoque.
Comecemos pelo peso que tem, no processo, o fato de sermos hoje uma Sociedade Urbana. A maior parte das pessoas vivem em cidades e os que moram no campo nelas realizam muitas entre as ações necessárias a suas vidas. Nossa forma de estar no espaço e no tempo é, sobretudo, orientada pelo fato de pertencermos a uma Sociedade Burocrática de Consumo Dirigido, como postulou Henri Lefebvre. Vivemos mais concentrados e a mobilidade espacial é, atualmente, muito maior do que a que tínhamos quando outras pandemias aconteceram, como a gripe espanhola ocorrida em 1918 que matou 50 milhões de pessoas. Saímos mais de casa, compramos todos os bens e serviços de que precisamos para sobreviver (e muito mais do que o necessário), fazemos muitas reuniões, temos diferentes tipos de lazer, em espaços públicos e privados. Dependemos menos das relações familiares e rompemos os círculos da casa para alcançar os da cidade e do mundo. Produzimos continuamente concentração e buscamos mobilidade.
Essa constatação mostra que o Vírus da Covid-19 tem mais condições de se distribuir espacialmente hoje do que teria um século atrás. No passado, o modo principal de disseminação de doenças contagiosas era por proximidade entre sujeitos infectados ou por outros vetores, conformando manchas contínuas. No mundo contemporâneo, podemos afirmar que os vírus, por meio dos humanos, “saltam escalas geográficas”, no sentido dado a esta expressão por Neil Smith. São transferidos de uma parcela a outra do território, atravessando continentes e oceanos, em pouco tempo, ligando pontos que são dotados de infraestruturas como grandes aeroportos ou portos. Isto significa que a circulação e a conectividade entre diferentes lugares têm peso tão importante como a localização territorial no processo de difusão espacial de fenômenos de todo o tipo, mostrando a pertinência da teoria de Milton Santos, para o qual o espaço é um conjunto indissociável de sistemas de ações e sistemas de objetos.
Dadas essas condições impostas pelo mundo em que vivemos, estamos diante de uma pandemia inusitada. O primeiro evento que se tem registro de magnitude mundial foi a Peste Negra, que assolou a Europa no século XIV e causou a morte de mais de 100 milhões de pessoas. Houve também a Gripe Russa, que provocou febre elevada e pneumonia, tendo como resultado 1,5 milhão de mortes no período de 1889-1890, além da já mencionada Gripe Espanhola. No entanto, a pandemia da Covid-19 foi a primeira do mundo globalizado, o que já vinha sendo anunciado por outras doenças que surgiram recentemente (quem não se lembra da apreensão que causou o surgimento da gripe suína, em 2009-2010; da gripe aviária, em 1997 e 2004; da Sars, em 2002?).
O fato da pandemia da Covid-19 ser a primeira do mundo globalizado chama a atenção para vários outros aspectos.
Hoje, a rede de cidades é, mais do que nunca, a rede sobre a qual se estruturam todas as demais, como bem pontuou Roberto Lobato Corrêa, como a rede de transportes, para destacar a que mais nos interessa para compreender a disseminação do vírus. Nem é preciso lembrar que as maiores distâncias, que este vírus já percorreu, em pouco tempo, deveu-se à circulação aérea, o que favoreceu sua difusão por vários continentes. Tendo ele chegado ao Brasil, entrando por São Paulo, tornou vulneráveis aqueles que moram na maior metrópole do Hemisfério Sul e, a partir daí, já se movimentou atingindo outras cidades e estados da federação, como mostra o mapa organizado por Candido et al (2020).
Esse movimento ocorre, em grande medida, segundo a estrutura da rede urbana e consoante sua hierarquia urbana. No Brasil, há muitos estudos sobre o tema e podemos, a título de exemplo, citar as Regiões de Influência das Cidades (Regic), elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, cujo mapa mostra não apenas o alcance espacial dos fluxos que se originam em São Paulo ou chegam até ela, como as probabilidades de disseminação do vírus pelas cidades paulistas de porte médio, principal base de organização espacial da Unesp. Os dados sobre a difusão da doença no país indicam que se trata de um modelo hierárquico, fortemente relacionado com as interações espaciais existentes na rede urbana brasileira.
Entretanto, interações espaciais, no caso desse vírus em tempos da globalização, não incluem apenas as de natureza territorial, aquelas que, para compreendê-las, teríamos de observar como se estrutura a distribuição dos objetos geográficos no espaço e como eles se articulam por meio das ações. Incluem também as interações espaciais imateriais que realizamos por meio das tecnologias de informação e comunicação, plano este de difusão que potencializa, de outro modo, os riscos da pandemia atual. Isso ocorre pela velocidade com que as informações científicas chegam ao cidadão ou pelas distorções provocadas pelas chamadas fake news, o que gera uma espécie de epidemia do medo, que superdimensiona problemas que a coletividade precisa enfrentar (como o esgotamento de máscaras cirúrgicas, utilizadas inadequadamente por muitas pessoas) ou invisibiliza as questões de grande relevância (como a priorização de grupos mais vulneráveis em detrimentos das necessidades individuais).
Talvez seja esta a primeira de muitas outras pandemias que estão por vir e isso passará a ser uma característica da vida social à qual teremos de nos adaptar. No entanto, se as transformações provocadas no mundo pela globalização geram situações perversas como a da difusão deste vírus, criam outras possibilidades como já alertava Milton Santos. Recriam a possibilidade de voltarmos à escala da vida na casa, de termos tempo para reencontrar os mais próximos em período do isolamento social. Favorecem a construção de consciência espacial e o pertencimento a um mundo, ao mesmo tempo, desigual e solidário. Não há como enfrentar esse desafio no plano individual e privado, mas apenas coletivamente e como ação pública.
por: Maria Encarnação Beltrão Sposito e Raul Borges Guimarães são professores do Departamento de Geografia da Unesp em Presidente Prudente