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Foto: Instituto Lia Esperança
Por Cinthia Leone/ Instituto Climainfo
Confira a entrevista com Lia Esperança, líder de uma favela em São Paulo, que faz da horta comunitária um espaço de resistência social e ambiental
Já pensou se as favelas das grandes cidades brasileiras também fossem pólos de produção de vegetais orgânicos? Essa é a bandeira de Lia Esperança, que defende a promoção de hortas comunitárias como uma política pública para trazer renda e qualidade de vida para dentro das comunidades.
Nascida Maria de Lourdes Andrade Silva, na cidade de Itaberaba (BA), Lia veio para São Paulo na década de 1990 para sair de um casamento mal resolvido. Ela adotou o nome da favela onde mora desde 2003, a Vila Nova Esperança, na Zona Oeste da capital paulista. Foi nessa comunidade que Lia descobriu a luta por moradia, a horticultura e a necessidade de unir direitos sociais e preservação ambiental. Com essas bandeiras ela foi candidata a vereadora em São Paulo, e apesar de não ter sido eleita, continua à frente do Instituto Lia Esperança que promove as periferias como vozes centrais para as soluções dos problemas nas cidades brasileiras.
O projeto O Clima Que Queremos conversou com Lia Esperança para entender porque as hortas comunitárias deveriam ser prioridade para a gestão pública e como elas podem inspirar outras favelas.
O Clima Que Queremos: Como a horticultura entrou na sua vida?
Lia Esperança: Tudo começou com um processo de despejo da nossa comunidade. Em 2006 eu descobri que neste lugar onde eu comprei um terreno havia um processo para remover a população porque a ocupação estava em uma área de preservação ambiental. O promotor só dizia que tinha que remover, que estávamos degradando a área. Eu achava injusto. Como preservar a mata sem preservar as famílias? Os dois lados são natureza. Eu argumentava com o promotor que era necessário levar educação ambiental para esses espaços, mas ele não queria me ouvir. Sou favelada, não estudei o suficiente, ou seja, não tenho uma faculdade, então pra ele minha fala não tinha valor.
Eu voltei para minha comunidade e comecei a dizer: quem faz nosso espaço somos nós mesmos. A primeira coisa que eu organizei foi um mutirão para fazer a gestão do lixo. Nós não temos coleta de lixo na porta. Os sacos eram deixados em um ponto, e os cachorros vinham e espalhavam tudo. Então primeiro nós criamos um abrigo para o lixo adequado para a nossa realidade e por meio de uma parceria com a ONG Teto e com estudantes e professores universitários.
Depois do abrigo de lixo, eu vi que nós também tínhamos que trazer educação ambiental para a comunidade. Mas como, se eu nunca estudei preservação ambiental? Eu decidi que a gente ia aprender fazendo, do nosso jeito. Decidimos começar com uma horta em 2013 pra gente aprender a conviver com a natureza. Para minha surpresa, nosso projeto ganhou dois prêmios em primeiro lugar já no ano seguinte: melhor projeto de urbanização e sustentabilidade, e o de Melhor Favela Sustentável. Foi assim que a gente começou a dar respostas para o promotor, de que é sim possível viver em uma área de preservação sem destruí-la.
E hoje vocês ainda sofrem pressão para remoção da comunidade?
O processo continua, mas para nossa felicidade não temos mais a pressão de antes. Já chegou a ter homens armados em nome da CDHU para nos ameaçar aqui, temos até vídeo. Tivemos que entrar com uma ação para impedir a CDHU de vir aqui diariamente nos ameaçar. Mas hoje até a própria CDHU reconhece nosso trabalho.
E como a experiência com a horta impactou a comunidade?
A ideia era ser uma horta comunitária em que todos os moradores participassem. Um plantava, um molhava, e todos poderiam juntos colher. Nos primeiros meses da horta foi assim. A Vila Nova Esperança é a primeira comunidade em que eu moro, eu nunca tinha morado numa favela. Eu só vim entender o que é a vida numa favela em São Paulo. A nossa ideia era que a horta servisse para nos unir, mas eu fui percebendo que dentro da comunidade, as pessoas queriam receber, mas não queriam plantar. E isso não é educar. Então tem que ter uma forma de ajudar, mas também fazer com que a comunidade valorize essa ajuda.
Quando nós fizemos essa horta, nós ficamos 6 meses colhendo e dando aos moradores. Muitos continuaram sem saber quanto custam as sementes, as mudas e o trabalho que dá cultivar. Então nós decidimos criar uma moeda, a moeda Esperança. Quem trabalhava ganhava essa moeda que poderia ser trocada por itens da horta, cestas básicas e outras ajudas. Mas mesmo assim, não funcionou no nosso caso. Então nós decidimos vender os produtos orgânicos na comunidade a um preço acessível. Ou seja, mesmo os moradores que não trabalharam na horta, ao comprar os produtos, eles já estão ajudando. Os recursos vão todos para o projeto.
Hoje quem trabalha na horta?
Nós temos na horta trabalhadores voluntários. Essas pessoas estão desempregadas e passam necessidades. Com as chuvas fortes de fevereiro, nós perdemos uma boa parte da produção. Então hoje nós estamos lutando para que esses voluntários consigam cestas básicas e ajudas de custo para que eles não passem fome. Essas pessoas precisam de mais do que a horta pode oferecer. Elas precisam de um feijão, de uma mistura. Embora elas não paguem aluguel aqui, têm que pagar luz e água, precisam comprar remédio. Em 2020, nós fomos dando um jeitinho. O nosso projeto venceu um edital da Fiocruz para receber 6 bolsas de R$1200, e nós decidimos dividir o valor para remunerar 12 voluntários do projeto com R$ 600 reais. Isso deu esperança a muitos que estavam muito deprimidos, alguns até pensando em suicídio.
Então nossa ideia atual é plantar o suficiente para vender cestas quinzenais para gerar recursos que possam ajudar esses voluntários a sobreviver. A gente também está planejando um bazar para arrecadar fundos para o projeto.
E vocês pensam formas para tornar a horta mais produtiva?
Nós precisamos investir para proteger nossa produção das intempéries. O que eu mais quero hoje é criar uma produção hidropônica aqui na comunidade. O poder público gasta dinheiro em coisas banais, mas eu tenho certeza de que o investimento em projetos desse tipo faria sobrar dinheiro nas prefeituras. Haveria menos doenças, menos pessoas nos postos de saúde e mais renda circulando nas comunidades. As prefeituras podem ter um papel importante promovendo feirinhas não apenas de alimentos, mas também de artesanato.
O projeto de vocês têm inspirado outras comunidades?
Sim. No dia 4/03 vamos ter um seminário para falar exatamente disso. Nós queremos organizar uma oficina aqui na Vila Nova Esperança com líderes de outras favelas mostrando como a gente fez a nossa horta e como ela nos ajuda. A horta comunitária traz saúde, segurança alimentar e renda. As pessoas precisam entender que elas podem trabalhar na agricultura. Isso faz bem, inclusive para a cabeça. Aqui na Vila Nova Esperança nós tivemos casos de pessoas que estavam com quadros graves de depressão e que melhoraram por meio do trabalho na horta.
A produção de alimentos ajudou as pessoas na Vila Nova Esperança a pensar mais sobre o tempo e sobre o clima?
Já aprendemos que chuva demais não é legal. O sol em excesso é ruim também, mas aí nós podemos molhar os cultivos. Nossa horta comunitária está instalada no terreno na Sabesp. A empresa pagava seguranças para vigiar o terreno, que era alvo constante de descartes irregulares de entulho. Quando a gente começou a ocupar com a horta, a empresa não precisou mais gastar com segurança, já que nós mesmo garantimos a limpeza do local. Em contrapartida, a Sabesp fornece a água necessária para manter os cultivos. Agora, com a chuva não podemos fazer muito. Se a gente já tivesse aqui o cultivo hidropônico, teríamos conseguido manter nossas alfaces mesmo com as chuvas fortes de janeiro e fevereiro. Mas apesar do aguaceiro, estamos tendo uma boa colheita de pimentão.
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